Atualmente os diagnósticos de transtornos mentais vêm ocupando mais o dia a dia dos indivíduos e, para que exista um diagnóstico uniformizado e validado, são necessários manuais que estabeleçam esses limites nosológicos. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM, é um dos principais documentos-guia para o estabelecimento de diagnósticos psiquiátricos e os motivos para o seu desenvolvimento e atualizações sofrem influência de aspectos fisiopatológicos, tecnológicos, culturais e sociais. Desta forma, uma análise retrospectiva facilita uma compreensão mais completa acerca dos diagnósticos psiquiátricos.

Para entender o contexto de criação do DSM I, é necessário compreender o documento que inspirou sua criação. No ano de 1946, o Boletim Técnico do Departamento de Guerra dos EUA-Medical 203, foi lançado no contexto do pós Segunda Guerra Mundial, que demandou a classificação dos transtornos sofridos pelos soldados após estes retornarem do campo de guerra. Em 1952, foi lançado o DSM I pela Associação Americana de Psiquiatria e a nomenclatura psicodinâmica proposta consistia nas psicoses, que eram as doenças maníaco-depressivas (na perspectiva de Kraepelin, que engloba tanto a mania quando as depressões não neuróticas) e a reação esquizofrênica.

Observa-se, portanto, que as patologias atualmente conhecidas como transtorno de humor unipolar e bipolar eram vistas como a mesma doença nos parâmetros do DSM I, no qual estas eram atribuídas a distúrbios no metabolismo, no crescimento, na nutrição ou nas funções exócrinas. Além disso, o manual tinha suas descrições distribuídas em parágrafos, incluindo 106 transtornos, que eram denominados “reações”, pois as doenças mentais seriam reações da personalidade a fatores sociais, psicológicos e biológicos.

Um tempo depois, em 1968, surgiu o DSM II, em função do desejo de alinhar a nosologia psiquiátrica americana com o CID (na época, o CID-8). Vale ressaltar que a abordagem dessa edição era marcadamente psicanalítica. Conceitualmente, as psicoses se tornaram neuroses e as reações esquizofrênicas viraram esquizofrenia. Nesse sentido, havia uma divisão conceitual que consistia em depressão melancólica e não melancólica, sendo a última associada a diversos nomes diferentes ao longo do tempo, como neurose histérica e neurose neurastênica. Entretanto, os transtornos continuavam dispostos em parágrafos e a forma de descrevê-los abria espaço para interpretações equivocadas.

Nesse contexto, entre 1969 e 1972 foi realizado uma experiência que, apesar de contraditória, evidenciou um grande problema na nosologia psiquiátrica da época. No experimento, Rosenhan e mais sete outros voluntários, todos sem questões de saúde mental, apareceram em hospitais psiquiátricos com uma queixa única, estar ouvindo uma voz falando uma das três palavras: “golpe”, “oco” ou “vazio” e, após a admissão, todos os pseudopacientes passaram a agir de forma normal. Entretanto, mesmo com queixa única, diversos indivíduos ficaram detidos por dias, em especial Rosenham, que teve que ficar 52 dias compulsoriamente no hospital. Por fim, 7 dos 8 voluntários foram diagnosticados como esquizofrênicos no local. Tal situação evidenciou o caráter precário da acurácia diagnóstica entre os indivíduos hígidos e aqueles com alguma patologia psíquica.

Dessa maneira, somava-se escândalos como o caso de Rosenham com diversas críticas acerca dos métodos de nosologia psiquiátrica utilizados na época, que hiperutilizava o diagnóstico de esquizofrenia enquanto a doença maníaca depressiva era pouquíssimo considerada. No fim da década de 70, foi lançado o Research Diagnostic Criteria, que introduziu de forma fiel a diferenciação entre transtorno bipolar e depressão unipolar, a última posteriormente dividida entre condição maior e menor. Ressalta-se que a depressão menor incluia o transtorno ansioso.

Em 1980 foi publicado o DSM III, que teve um caráter revolucionário, que trouxe descrições clínicas precisas, diagnósticos diferenciais, estudos laboratoriais de marcadores biológicos, prognósticos, além de um sistema multi-axial, em que o indivíduo era diagnosticado em diferentes eixos. O documento foi redigido por uma junta de pesquisadores e visava uniformizar os diagnósticos e aumentar a consistência com o CID. Entende-se o DSM III como uma versão mais psiquiátrica, em contraste com a abordagem psicanalítica dos seus antecessores. Entre os “novos nomes” trazidos por essa edição, tem-se depressão maior, autismo infantil, transtorno de personalidade esquizóide e transtorno de déficit de atenção. Contudo, esse excesso de novos termos e definições gerou uma certa confusão nos diagnósticos e tratamentos na época.

Em 1987, sete anos após o lançamento do DSM III, foi publicado o DSM III-R, que tratava-se de uma edição revisada, visando se aproximar do CID-10 que seria lançado. Entre as alterações de nomenclatura, o transtorno de déficit de atenção virou transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, além disso, os transtornos afetivos passaram a ser chamados de transtornos de humor. Ainda assim ansiedade e depressão continuavam sendo tratadas como o mesmo transtorno.

Em 1994 foi lançado o DSM-IV e o líder do projeto, Allen Frances, que também tinha formação psicanalítica, tecia críticas ao próprio projeto ao vê-lo como excessivamente descritivo. Entre as atualizações observadas, houve maior descrição do transtorno bipolar e o surgimento da síndrome de Asperger, ambas as patologias que tiveram um “boom” de diagnósticos após o lançamento da quarta edição do manual.

Nesse sentido, foi publicada uma atualização chamada DSM-IV–TR, que aumentava a base de dados e incluía novos diagnósticos com critérios mais claros e precisos. Ainda assim, havia inúmeras queixas de psiquiatras que não viam seus pacientes naqueles manuais tão pragmáticos.

Por fim, em Maio de 2013, foi oficialmente publicado o DSM-5, após a união de diversos pesquisadores e um longo processo de produção e revisão. Estruturalmente, a nova edição rompeu com o modelo multiaxial utilizado no passado, acabando com a divisão de eixos. Justificou-se que a nota de uma categoria não transmitia informações suficientes para compreender um paciente de forma global. Entre as mudanças, tem-se o surgimento dos transtornos de neurodesenvolvimento, categoria que abrigou diversas condições antes associadas aos transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência. O conceito de esquizofrenia foi novamente foco de atenção e seus subtipos foram abolidos, além do conceito de delírios bizarros ter sido tirado por ser muito sujeito à subjetividade. Também surgiu o capítulo dos transtornos de ansiedade, que incluía o TOC e o transtorno de estresse agudo, por exemplo. Ademais, os antes transtornos somatoformes tiveram grandes alterações, como a retirada da hipocondria e o surgimento do transtorno com sintomas somáticos. Entre outras novidades, o DSM-5 trouxe temas como transtornos alimentares e disfunções sexuais. Outra temática extremamente problemática abordada pelo DSM-5 é a classificação de transtornos de gênero, cuja inclusão em um manual de transtornos mentais levantou diversas discussões dentro da comunidade.

Entende-se, portanto, que as várias formulações do DSM ao longo dos anos tiveram pontos positivos e aspectos criticados dentro da comunidade, sendo possível compreender o desejo em estabelecer uma unidade nosológica dentro da psiquiatria. Vê-se também como os contextos socioculturais que permearam as datas de lançamento das edições do manual tiveram grande impacto na linha de análise a ser usada, na busca da formulação de um manual que consiga, nem que sutilmente, representar a complexidade dos seres humanos.

Referências bibliográficas:

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 Araújo, Álvaro Cabral, & Lotufo Neto, Francisco. (2014). A nova classificação Americana para os Transtornos Mentais: o DSM-5. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 16(1), 67-82. Recuperado em 02 de maio de 2022, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452014000100007&lng

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